Tributaristas avaliam que não adianta criar um imposto por si só; a ação deve ser acompanhada de medidas para incentivar a produção, ou não surtirão efeito, só vão causar insatisfação
Por Monique Lima
Uma das principais propostas da campanha eleitoral do presidente Luis Inácio Lula da Silva foi a reforma tributária. Existe um consenso entre os agentes econômicos de que esta reforma é a mais importante para garantir um crescimento sustentável do país nos próximos anos. Apesar deste primeiro projeto não definir sobre tributos e alíquotas, um dos tópicos mais sensíveis e aguardados é o IGF (Imposto sobre Grandes Fortunas).
Em suas falas durante a campanha eleitoral, Lula afirmou diversas vezes que é necessário que a população mais rica do país pague mais impostos do que os mais pobres. O tópico não é um assunto novo no Brasil. A Constituição Federal de 1988 aborda o tema no artigo 153. Entretanto, em pouco mais de três décadas, o IGF nunca foi regulamentado, e não foi por falta de iniciativas.
Ao menos 37 proposições já foram registradas desde 2008, segundo o advogado Leonardo Roesler, especialista em direito tributário e societário da RMS Advogados. Entretanto, somente 18 delas chegaram a ser encaminhadas para discussão. Nenhuma avançou.
Roesler acredita que devido ao déficit fiscal do país e ao discurso do então candidato Lula, a proposta deste ano deverá resultar em um projeto de lei complementar. Entretanto, o debate promete ser acalorado. Mais de um quarto (34%) da população brasileira não concorda com a taxação de grandes fortunas, segundo pesquisa do DataSenado divulgada em fevereiro deste ano, embora a maioria (62%) concorde com a criação do IGF.
Ubaldo Juveniz Junior, sócio do escritório Juveniz Jr. Rolim Ferraz Advogados, afirma que se a proposta não for bem estruturada, a medida que visa diminuir a desigualdade social no país poderá resultar em mais desigualdade e levanta duas problemáticas.
Problemas em taxar grandes fortunas
A primeira dificuldade é que não é fácil definir o que é “grande fortuna”. Já houve projetos que classificaram como grande fortuna patrimônios 50 mil vezes superiores ao salário mínimo, algo em torno de R$ 60 milhões. Outros projetos já estabeleceram como corte R$ 10 milhões. O mais recente propõe taxar fortunas acima de R$ 22,8 milhões.
Em termos de alíquotas, as incidências sugeridas ficam em uma faixa entre 0,5% e 3,0% anuais. Para quem tem uma fortuna de R$ 50 milhões, por exemplo, o IGF poderia chegar a R$ 1,5 milhão. Segundo o advogado, “é um tributo que atinge o bolso dos mais abastados, mas que não resolve muita coisa em termos de arrecadação fiscal.” Cerca de 70 mil pessoas no Brasil possuem patrimônio superior a R$ 22,8 milhões. Considerando a alíquota máxima proposta, a arrecadação potencial chegaria a R$ 47,9 bilhões.
“Os programas sociais do governo Lula vão ficar acima do teto de gastos em R$ 146 bilhões, em média, por ano. O objetivo desse tributo é fazer alguma justiça social, porém mais no aspecto moral, para dizer que os mais abastados também pagam tributos”, afirma Juveniz.
O segundo problema seria a potencial “fuga dos ricos”. Isso porque, o IGF incide sobre pessoas físicas com condições de contornar a situação tirando o patrimônio do país, segundo Juveniz. “Quem tem menos condições de usar mecanismos para evitar o imposto vai continuar pagando, e quem tem grandes fortunas pode utilizar tais recursos a fim de evitar a incidência”, diz o advogado.
Leonardo Roesler afirma que a Argentina teve esse problema quando instituiu seu imposto sobre grandes fortunas em 2020, para arrecadar capital e cobrir algumas das despesas da pandemia. Por lá, cerca de 77% dos cidadãos que estavam sujeitos a uma cobrança de 2% até 5,25%, progressivamente, sobre patrimônios acima de 200 milhões de pesos (US$ 2,1 milhões) cumpriram os pagamentos. Cerca de 3 mil ricos ficaram em débito com o governo e 200 abriram processos na Justiça para não pagar o valor.
IGF é uma medida, não a solução
O advogado tributarista acredita que o IGF deve ser visto como uma das medidas em uma proposta mais abrangente para o governo conseguir uma arrecadação efetiva. Ele afirma que empresas offshore, abertas em paraísos fiscais, são práticas antigas para retirar o patrimônio do país e que sempre funcionaram.
“Não adianta criar um imposto sem ampliar a fiscalização e há muitas formas de fazer isso, dependendo de como será o imposto”, diz o advogado. E exemplifica: “é possível usar mecanismos via declaração de Imposto de Renda, ampliar a atuação da Receita Federal, criar tratados internacionais de cooperação, entre outras possibilidades.”
Outro tópico levantado por Roesler é a questão da transparência e qualidade do texto. O IGF prevê a incidência de imposto sobre bens e dinheiro, entretanto, para veículos já existe o IPVA, para imóveis o IPTU e para terrenos o ITR.
“Impostos geram desconfiança e insatisfação no Brasil por uma questão cultural e antiga de maus serviços, corrupção, fiscalização precária. Os mais ricos veem a tributação como injusta e/ou confiscatória por ser muito fragmentada e mal distribuída”, diz Roesler.
Juveniz diz acreditar que se os membros da comissão que estão desenvolvendo o texto não aprimorarem seus critérios, é grande o risco de que se repita uma situação como a que ocorreu na Argentina, com muitos contribuintes não pagando e uma enxurrada de processos judiciais no já congestionado Judiciário. “É um tributo dificílimo de instituir e, após instituído, vai sofrer ataques de todos os lados, trazendo o judiciário para o jogo”, afirma o advogado.
Onda global
Não é apenas no Brasil que se discute o tópico. Mundialmente se debate o assunto, principalmente após o agravamento da desigualdade social no mundo devido à pandemia.
O novo relatório da Oxfam, divulgado durante o Fórum Econômico Mundial, realizado em Davos no ano passado, mostrou que a população 1% mais rica do mundo ficou com quase 2/3 de toda riqueza gerada desde 2020, cerca de US$ 42 trilhões (R$ 220,25 trilhões). O número é seis vezes maior do que o dinheiro que 90% da população global de 7 bilhões de pessoas acumulou no mesmo período.
Segundo o documento, um imposto anual sobre a riqueza de até 5% sobre os super-ricos poderia arrecadar US$ 1,7 trilhão (R$ 8,90 trilhões) por ano. O valor é suficiente para tirar 2 bilhões de pessoas da pobreza e financiar diversas ações de combate a fome pelo mundo.
Economistas e políticos possuem propostas sobre o assunto. O francês Thomas Piketty, por exemplo, defende um imposto global progressivo. Sua proposta considera uma alíquota mínima de 5% sobre fortunas superiores a € 2 milhões (R$ 11,02 milhões). A alíquota máxima seria de 90% para os abastados que valem mais de € 2 bilhões (R$ 11,02 bilhões).
A meta, segundo o economista, é que “não haja mais bilionários”. O imposto atingiria sua finalidade quando ninguém mais fosse rico o suficiente para pagá-lo e a arrecadação fosse zero. Isso porque, a função da taxa é reequilibrar os valores e diminuir a desigualdade de renda.
Para este mesmo objetivo, a senadora democrata norte-americana Elizabeth Warren tem outra proposta de taxação de fortuna global. Sua proposta é o “Imposto Ultra-Milionário”. A taxa cobraria “2% ao ano sobre cada dólar de patrimônio líquido acima de US$ 50 milhões (R$ 257 milhões) e um imposto de 6% sobre cada dólar de patrimônio líquido acima de US$ 1 bilhão (R$ 5,15 bilhões).”
Não existe nenhuma proposta em curso para este imposto global sobre pessoas físicas. Por via das dúvidas, porém, Elon Musk, segunda pessoa mais rica do mundo segundo a Forbes e até recentemente o mais abastado, já colocou os funcionários da SpaceX, sua empresa de viagens espaciais, de prontidão para desenvolver as viagens para Marte.